Miles Ahead · Orquestra Jazz de Matosinhos e Gileno Santana

- Este evento já decorreu.
Miles Ahead · Orquestra Jazz de Matosinhos e Gileno Santana
28 Março, 2021 @ 17:00 - 18:00

Quando se juntou a Miles Davis, o arranjador canadiano Gil Evans trouxe uma proposta arrojada: a gravação de um disco em forma de suite com uma orquestra de jazz com instrumentação alargada. O disco chamou-se Miles Ahead, e a ele seguiram-se outros dois a coroar esta parceria frutuosa. A história do jazz já não se escreveria sem estes capítulos que, segundo Miles, procuravam trazer de volta a melodia para o centro da improvisação. O solista convidado para reconstituir, ao lado da OJM, as sonoridades únicas de Miles Ahead é Gileno Santana, trompetista luso-brasileiro com intensa carreira e reconhecimento internacional.
Miles Ahead
Orquestra Jazz de Matosinhos e Gileno Santana
Pedro Guedes direcção musical
Gileno Santana trompete
Gil Evans arranjos
Concerto de homenagem à obra de Miles Davis e Gil Evans
NOTAS AO PROGRAMA
Miles Ahead
Arranjos de Gil Evans
Em 2019, a Orquestra Jazz de Matosinhos tocou na Sala Suggia a música de uma figura que, apesar de não muito conhecida do público geral, influenciou os caminhos que o jazz tomou a partir dos anos 50 — George Russell. No concerto que hoje transmitimos, realizado em 2020, a música é outra mas os pontos de contacto são muitos, começando desde logo pela cave que juntava regularmente este e outros músicos, então ainda jovens: Gerry Mulligan, Lee Konitz, Johnny Carisi e John Lewis, ocasionalmente Dizzy Gillespie e Charlie Parker — e, através de Parker, um Miles Davis com vinte e poucos anos. A cave na West 55th Street, em Nova Iorque, era o apartamento onde morava Gil Evans (1912-1988) desde que tinha terminado o serviço militar, em 1946. Aí se debatia o futuro do jazz: “Era como uma escola esotérica e Gil era o professor. O mais importante que dali saiu foi o facto de todos sermos encorajados a procurar atingir o impossível… Era uma sorte podermos ver as coisas através dos olhos de Gil”, diria Russell mais tarde.
O mais significativo e imediato resultado desses encontros foi uma série de gravações em noneto, lideradas por Miles Davis (1926-1991) e editadas de forma avulsa entre 1949 e 1950 — e, mais tarde, reunidas no famoso álbum Birth of the Cool (1957). Aí, os arranjadores ganhavam uma proeminência pouco comum e trabalhavam o som do ensemble para lá do universo dos pequenos grupos de bebop. Gil Evans arranjou apenas dois dos temas, mas teve um grande peso na abordagem seguida por todos os participantes — uma abordagem que tinha por base o som da big band de Claude Thornhill, diferente de todas as outras do seu tempo. Esta orquestra, com a qual trabalharam Evans e Mulligan, era já um laboratório de orquestração desafiante que integrava instrumentos menos usuais como as trompas e a tuba.
Quando Miles Davis assina contrato com a Columbia, teve (e tivemos nós) a sorte de uma grande editora poder ser, então, mais do que uma fábrica de êxitos previsíveis. Pelo contrário, o produtor George Avakian quis fazer algo novo e sugeriu juntar Miles Davis e Gil Evans, solista e arranjador, numa banda de 20 elementos que se afirmava herdeira do cool jazz. Os arranjos não eram os de uma big band clássica, com a contraposição característica de naipes bem definidos, mas antes uma procura de timbres ainda desconhecidos — com especial protagonismo dos metais, sendo os sopros de palheta usados essencialmente pela diversidade de colorido que imprimiam. O espaço para os solos tinha de ser bastante aberto à imaginação melódica, livre de progressões harmónicas frenéticas que já as gravações do Birth of the Cool tinham recusado desde 1949 — favorecendo o tal olhar “modal” que George Russell sistematizou do ponto de vista académico. A grande facilidade em levar a cabo este projecto era que se tratava de juntar dois músicos que nutriam uma admiração mútua entre si: Gil Evans via em Miles Davis o primeiro trompetista a criar um som novo, desde Louis Armstrong, e a libertar-se da enorme influência deste; Miles Davis tinha uma confiança sólida na capacidade de Gil Evans levar ao fundo as ideias musicais mais improváveis. Os dois traziam o ímpeto de procurar o novo, de dentro para fora, fazendo a música que melhor servia a sua própria expressão artística.
Um dos aspectos-chave para a apresentação deste repertório em concerto é a predominante ausência de vibrato nos sopros — em linha do que praticava a orquestra de Claude Thornhill e, na verdade, se tornou uma marca bem conhecida da expressão de Miles Davis. Sem vibrato, as harmonias densas ganham clareza mas exigem também uma grande fusão entre as diferentes vozes, revelando-se um desafio exigente mesmo para uma big band experiente — com a dificuldade acrescida de se tratar de arranjos escritos para o estúdio e não para serem tocados ao vivo, o que obriga a um reequilíbrio das vozes através da amplificação.
O primeiro disco gerado pela dupla Davis-Evans foi Miles Ahead, em 1957, concebido pelo arranjador como uma suite contínua, sem interrupção entre as faixas. O que marca o disco não é propriamente o repertório escolhido, mas sim o trabalho criativo de recomposição que Gil Evans leva a cabo e que, nesse sentido, pode ser visto como muito mais do que simples arranjos. É isso que lhe permite partir de temas como “Les Filles de Cadix” do compositor francês de óperas e bailados Léo Delibes, aqui transformado em “The Maids of Cadiz”, ou mesmo criar um “Blues for Pablo” quase impressionista a partir de uma melodia do bailado O Chapéu de Três Bicos do espanhol Manuel de Falla. Outros temas do mesmo disco incluídos na selecção feita para este concerto da OJM são “New Rhumba” do pianista Ahmad Jamal, num arranjo muito colado ao original em trio, em jeito de homenagem — sendo Jamal um músico de referência para Miles; “My Ship”, canção melancólica de Kurt Weill cuja simplicidade contrasta com a riquíssima re-harmonização de Evans; “The Duke” de Dave Brubeck; “Springsville” de John Carisi; e “Miles Ahead”, composição assinada por Gil Evans.
O segundo projecto de Miles Davis e Gil Evans para a Columbia foi centrado na música de George Gershwin para a ópera revolucionária Porgy and Bess, a que se seguiu o álbum Sketches of Spain. Voltando à influência de George Russell no que respeita à linguagem modal, percebe-se melhor o que representou se lermos algumas linhas do próprio Miles Davis, a respeito de um dos temas de Porgy and Bess: “Quando Gil fez o arranjo de “I Loves You, Porgy”, escreveu apenas uma escala para mim. Nenhum acorde… isto dá muito mais liberdade e espaço para se ouvir coisas… há poucos acordes mas o que se pode fazer com eles ganha possibilidades infinitas.”
Ao longo dos anos, a música dos três álbuns foi sendo transcrita e reinterpretada por outros músicos, até que, em 1996, foram descobertas três caixas numa arrecadação que tinha sido arrendada por Miles Davis. Uma das primeiras pessoas a analisar o seu conteúdo foi Jeffrey Sultanof, identificando as partituras destes três álbuns e até algumas partes individuais usadas nas gravações. Nas suas palavras, “quando se compara estas partituras originais com as transcrições, imediatamente se conclui que é inútil sequer tentar transcrever a música de Gil, porque ele repetidamente engana o ouvido.” Jeffrey Sultanof, Rob Duboff e Dylan Canterbury são os editores responsáveis por tornar esta música disponível para estudo e interpretação.
Como se sabe, Miles partiria para experiências bem diferentes ao longo dos anos seguintes e continuou a ser protagonista de várias revoluções. Mas em todas elas reafirmou o que o levou a gravar com Gil Evans: que perseguia constantemente um meio para expressar a sua arte com a maior profundidade que sabia. “Man, sometimes it takes you a long time to sound like yourself.”
Fernando Pires de Lima