O FEITICEIRO DO SOM

HERMETO PASCOAL
O mês de Junho começa com os sons mágicos de Hermeto Pascoal. Brasileiro de Alagoas, com 85 anos, há muito se tornou uma lenda e uma fonte de inspiração para músicos dos quatro cantos do mundo. Mas quem mais se inspira é o próprio Hermeto. Inspira natureza e tudo o que vive à sua volta, expira música com a naturalidade de um pássaro e a curiosidade de uma criança. Que essa música soe sempre tão original e inesperada, tão desafiante e bela, às vezes estranha porque tão visceral, é um facto que não supreenderá quem já o ouviu. O facto, note-se. Quanto à música, se traz uma certeza é o seu vestido de surpresa. Podemos adivinhar que haja água misturada com instrumentos, ou não fosse esse elemento fundamental tão presente na vida/música de Hermeto, que com ela se apresenta:
“Eu sou o Hermeto Pascoal e estou tocando aqui, com os sapos, e fazendo um som aqui na beira do lago, aqui no sítio do campeão Jovino, quebrando tudo aqui. E eles estão aqui me desafiando, e eu estou gravando agora aqui, ’tá chovendo, quer dizer, choviscando, e quanto mais chove mais eles cantam. Eles gostam muito da chuva. E os bichos ’tão quente, minha gente. Vai fogo. (…) Eu senti muito o sapo dizendo: pode ir, pode tocar… e eu tocava, tocava… e de repente ele dizia: não, pára, pára que eu vou continuar. Eu parava, mas eu sentia isso! Mas para tudo isso teve que ter uma preparação. Para dizer p’ra eles também: olha, eu cheguei. Para depois eles dizerem p’ra mim: olha, mas o dono da festa aqui sou eu. Eu ’tou na lagoa, a lagoa é minha. Você ’tá aqui, p’ra você tocar você tem que entrar na nossa. Aí quando ele esquenta mesmo, você precisa tomar cuidado, porque tem hora que eu apanho dele, ganha de mim. Em termos de rapidez mental, eu perco até p’ro sapo.”(1)
Na biografia de um músico de renome internacional, tem obrigatoriamente de figurar um percurso académico de alto nível e os devidos diplomas. Hermeto Pascoal também frequentou as suas academias: “Eu tocava pífano com os animais, lá no mato, na minha terra, onde morei até aos 15 anos. Chegava e eles vinham p’ra beira da cerca, p’ra eu tocar um forrozinho que eles gostavam, ou então numa árvore já certa, eles iam lá e eu tocava. Me criei com um público especial, graças a Deus. Fazia mais coisas. Com oito anos eu trabalhava com um ferreiro, pegava uns pedacinhos de ferro, que ele mandava botar no lixo, e guardava p’ra tocar. Eu nasci músico. Eu nasci música, graças a Deus.”(2) Quanto aos diplomas, “a minha parede ’tá cheia de fotografias, eu com porquinho na parede, acho muito mais importante do que o diploma. Diploma é muito pesado, pode até derrubar a casa lá, não dá não.”(3)
Para alguns, tudo isto poderá parecer uma fantasia ingénua e a verdade crua e cinzenta há-de estar escondida algures. Quem é Hermeto Pascoal? Como surgiu este músico que dá brilho a qualquer festival internacional de música e que honra o nosso Ciclo de Jazz com este concerto imperdível? É o resultado do que atrás ele mesmo diz, mas é também o resultado de Brasil, país de música popular diversa, sofisticada, sem medo de se abrir ao mundo porque tão profunda, tão cheia de si mesma e desse mesmo mundo. Nenhum músico brasileiro será alguém sem respeito e reverência pela música popular brasileira. E todos eles o manifestam, tanto os populares e os jazzistas como os clássicos e rappers, os rockeiros ou o que sejam. Os norte-americanos chamam “brazilian jazz” à música de Hermeto Pascoal, e não é por mal. É música livre, universal, tem de tudo e Hermeto sabe ir ao jazz quando a intuição para lá o conduz. Nesses momentos, aliás, demonstra uma capacidade assombrosa para ombrear com qualquer músico de jazz de topo. Hermeto Pascoal é um génio universal.
Guiado apenas pela intuição, Hermeto faz música tão sofisticada quando atractiva, e certamente inclassificável. Podia estar num programa de jazz como noutra qualquer prateleira que se queira inventar. É música. Inquieto, não entende a imitação e a repetição: “Se o Villa-Lobos pudesse falar agora, ele diria: ‘Gente, toquem o Trenzinho Caipira com outro arranjo. Já que eu não estou aí e não posso fazer, façam vocês.’ É como aquela pessoa que usa a mesma roupa a vida toda; como aquele edifício lindo, maravilhoso e bem construído, porém sem restauração. É preciso de restauração na música, mas existem os preconceitos, aquelas pessoas antigas que não querem mexer. Os próprios compositores não podem falar nada porque não estão mais connosco, mas mesmo mentalmente eles mandam o recado. (…) O Mozart estaria entortando tudo por aí, fazendo um monte de acordes maravilhosos, aliás, todos eles estariam fazendo isso. Eles dão inclusive a intuição para as pessoas, mas quando esbarram nos conservadores aí… ‘Não vai mexer na obra, não pode mexer na obra.’ Isso tem que acabar.”(4)
Há décadas que Hermeto Pascoal estimula os músicos que a ele se juntam e que o consideram um autêntico pai musical e filosófico. Acordeonista, pianista, saxofonista, flautista, tocador de chaleira, copo com água, corpo e todos os objectos, prefere que o vejam como compositor e arranjador. “O instrumentista todo mundo já conhece. Como todos os músicos da minha banda tocam maravilhosamente bem, se você for a um show meu, vai ver que no palco eles tocam mais do que eu.”(5)
A 1 de Junho, no Ciclo de Jazz, a Casa da Música recebe pela primeira vez o bruxo dos sons. Hermeto Pascoal vem acompanhado do seu grupo formado por Itiberê Zwarg (baixo), Jota P. (saxofones e flautas), Fábio Pascoal (percussão), André Marques (piano) e Ajurinã Zwarg (bateria).
(1) Hermeto, Campeão, filme de Thomaz Farkas, 1981.
(2) https://www.santamarcelinacultura.org.br/noticias/entrevista-com-hermetopascoal- para-mim-musica-nao-e-trabalho-e-devocao/
(3) Hermeto, Campeão, filme de Thomaz Farkas, 1981.
(4) https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2017/07/30/hermetopascoal- eu-nasci-musico-eu-sou-musica-298275.php
(5) https://www.santamarcelinacultura.org.br/noticias/entrevista-com-hermetopascoal- para-mim-musica-nao-e-trabalho-e-devocao/