Rádio, tecnologia e música electroacústica
A rádio contribuiu determinantemente para definir a modernidade. Encarnando uma nova forma invisível de energia, foi essencial na Segunda Revolução Industrial, marcada pelo domínio do Homem sobre a electricidade. As primeiras experiências da nova tecnologia transmitiram de mensagens pelo éter e constituíram os primeiros passos do wireless. Essa tecnologia sem fios foi aplicada às comunicações militares e marítimas, facilitando a circulação de informação. Nessa fase, falamos de telegrafia sem fios baseada em código. Posteriormente, realizaram-se as primeiras experiências de transmissão de outros sons através das ondas. Assim, a telefonia sem fios (T.S.F.) estabeleceu-se como novidade cultivada por profissionais e amadores, que construíam as suas estações. A comunidade de senfilistas, como era chamada na época, desenvolveu os mecanismos e articulou-se em rede. Nessa altura, as comunicações eram bilaterais e contavam com a participação de todos. Paralelamente, fizeram-se as primeiras experiências de radiodifusão. Nelas, um emissor transmitia informação que chegaria às pessoas de uma forma unilateral. As primeiras estações foram criadas e os receptores de rádio entraram nas casas e nos cafés, transformando a sociabilidade. Grupos de pessoas reuniam-se em torno do aparelho e seguiam notícias, eventos desportivos, radionovelas e programas musicais. Tudo intercalado com publicidade. As transmissões em directo de música gravada e de apresentações musicais ao vivo foram centrais para tornar essa inovação eficiente. Dessa forma, criaram comunidades unidas pela tecnologia e contribuíram para definir o gosto musical de muitas pessoas.

Alguns desenvolvimentos associados à radiodifusão foram aplicados a outros meios. O domínio da electricidade permitiu a invenção de mecanismos como os microfones de condensador e as válvulas. Agora, era possível captar o som de forma mais eficiente, o que abriu o caminho à fase eléctrica da gravação sonora. A nova forma de registo foi essencial para a carreira de muitos intérpretes, que se tornaram presença assídua na casa das pessoas. Nesse contexto, foram igualmente desenvolvidos sistemas eléctricos de amplificação, que permitiam receber o som com maior clareza. Essa tecnologia foi rapidamente incorporada pela indústria cinematográfica, que lançou as primeiras longas-metragens sonoras na década de 1920 e distribuiu-as por cinemas adaptados ao novo género.
Contudo, a radiodifusão não se concentrou na emissão de programas populares. Desde cedo, os modernistas realizaram experiências nesse meio. Usados para fins educativos, os emissores transmitiram muita música erudita e criaram várias orquestras. Paralelamente, algumas estações encomendavam obras musicais. Dessa forma, tiveram um papel central na criação artística do século XX. Autores como Samuel Beckett e compositores como Kurt Weill, Hanns Eisler, Bernard Herrmann escreveram obras para transmissão radiofónica. Na década de 1950, John Cage escreveu obras de concerto em que os intérpretes usavam receptores de rádio como instrumentos. O círculo completa-se.
Uma importante invenção para a fixação das ondas sonoras foi o suporte magnético. Nele, o som era armazenado numa fita magnetizada, o que reduzia a a distorção e superava as limitações de tempo dos discos. Desenvolvidos na Alemanha na década de 1930, os gravadores de bobine tiveram um papel importante na propaganda do Nazismo e nas comunicações da Segunda Guerra Mundial. Ora, este mecanismo era ideal para a gravação de programas de rádio, libertando muito do tempo de emissão do directo. Agora, tornava-se possível planificar melhor a transmissão radiofónica, equilibrando os programas. Os principais emissores criaram estúdios para captação e tratamento do som, espaços que se tornaram essenciais para o desenvolvimento da música electroacústica. Neles, a experimentação abriu caminho à experimentação vanguardista, com as novas possibilidades de manipulação da maquinaria e da própria fita magnética. Paralelamente, a criação de tecnologias portáteis de registo e da gravação multipistas transformaram a nossa relação com o som a partir da década de 1950.
Os pioneiros da música electrónica trabalharam nos estúdios das estações radiofónicas mais importantes, onde técnicos e compositores trabalhavam em conjunto. Halim El-Dabh desenvolveu um trabalho importante no Cairo (e, posteriormente, nos Estados Unidos da América), Pierre Schaeffer e Pierre Henry em Paris e Karlheinz Sotckhausen em Colónia. Contudo, os estúdios trabalhavam de forma diferente. 1951 foi um ano importante, pois assistiu ao estabelecimento de dois importantes espaços: o da Groupe de Recherche de Musique Concrète, sediado na Radiodifusão Francesa, e o Estúdio de Música Electrónica da WDR de Colónia. No primeiro, pontificavam Schaeffer e Henry, que trabalhavam, sobretudo, com sons gravados. Assim, deslocavam-se com um gravador portátil e recolhiam os materiais que seriam trabalhados em estúdio, designando o seu trabalho por musique concrète. No segundo, dirigido por Hans Eimert, pontificava o jovem Karlheinz Stockhausen. Nele, trabalhavam predominantemente com sons gerados electronicamente. Em 1955, foi criado o Studio di Fonologia da RAI de Milão, instituição liderada por Bruno Maderna e Luciano Berio, e, em 1959, o Computer Music Center, associado às universidades americanas de Columbia e Princeton, que se destacou pelo recurso a sintetizadores e ao computador.
À criação de obras baseadas em sons concretos e electronicamente gerados chamou-se música electroacústica. Deu-se o nome de música acusmática a obras executadas exclusivamente por altifalantes e de música mista a peças para músicos ao vivo e sons pré-estabelecidos. O suporte desses sons electrónicos ficou conhecido por banda magnética, tendo em conta que este era o formato dominante à época. A banda magnética era preparada e apresentada de forma fixa, o que limitava a interacção com músicos ao vivo. Um dos exemplos dessa prática é La fabbrica illuminata, obra de Luigi Nono composta em 1964. Escrita para voz feminina e banda magnética, o compositor incluiu sons gravados e gerados electronicamente, trabalhados no Studio di Fonologia da RAI de Milão. De acordo com o próprio Nono, os materiais foram processados até se tornarem irreconhecíveis, evitando a comparação com sons “reais.” Assim, a Tecnologia aliada à Arte supera a Natureza e cria um universo sonoro novo.
O passo seguinte foi libertar a música da inalterabilidade da banda magnética, um constrangimento importante para a criação vanguardística. Assim nasceu a electrónica em tempo real, na qual os sons de músicos ao vivo são manipulados à medida que são emitidos. Para isso, contribuíram a gravação multipistas e disseminação da mesa de mistura na década de 1950. A mesa de mistura permite controlar a saída de som em canais isolados, alimentando a criatividade do seu manipulador. Paralelamente, permite distribuir o som por vários altifalantes, criando um espaço sonoro tridimensional e dinâmico. Guai ai gelidi mostri, incluída no Festival Música & Revolução deste ano, é um exemplo do uso das novas possibilidades por Luigi Nono. Destinada a vozes e agrupamento instrumental, os sons produzidos pelos nove intervenientes são trabalhados pela régie, que os combina e redistribui por oito altifalantes espalhados na Sala Suggia. Um exercício sobre a pluralidade e o dinamismo do som que coloca em questão a natureza do mesmo.
Saiba mais sobre o Festival Música & Revolução, de 23 a 25 de Abril 2021, na Casa da Música: https://info.casadamusica.com/musica-revolucao-2021