Transmissão Online 18 Abril
Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música
Pedro Neves direcção musical
Raquel Couto narração
Maurice Ravel Ma Mère l’Oye, 5 peças infantis
O imaginário infantil é revisitado por Maurice Ravel em Ma Mère l’Oye, obra de 1908 dedicada aos filhos de um casal amigo. Escrita originalmente para piano a quatro mãos, para “evocar a poesia da infância” a partir de contos infantis, ganhou uma dimensão sinfónica pela mão do próprio Ravel. Aqui, o génio do compositor junta-se ao talento do orquestrador para sugerir o colorido fantástico dos mundos de A Bela Adormecida, A Bela e o Monstro, O Pequeno Polegar ou outros recantos por vezes esquecidos na nossa memória.
NOTAS AO PROGRAMA
Helena Marinho Maurice Ravel Ma Mère l’Oye, 5 peças infantis (1908, orq.1911) 1. Pavana da Bela no bosque adormecida 2. Pequeno polegar 3. Laideronnette, Imperatriz dos Pagodes 4. Diálogos entre a Bela e o Monstro 5. O Jardim feérico Os contos de fadas inspiraram Ravel a compor a suite Ma Mère l’Oye (A Minha Mãe Ganso), e esta temática, não obstante a sua aparente ingenuidade e simplicidade, levou-o a criar três versões distintas da obra entre 1908 e 1912. Em 1908, compôs a versão original, um dueto para piano a quatro mãos em cinco andamentos, dedicado a Mimi e Jean Godebski, filhos de um casal de amigos de Ravel. No entanto, a obra foi estreada apenas em 1910 por outras duas jovens pianistas, Jeanne Leleu e Geneviève Durony. Instado pelo seu editor, Ravel viria a realizar dois arranjos em 1911: uma suite orquestral com idêntico número de andamentos, estreada nesse ano, e uma versão para bailado estreada em 1912, baseada num guião elaborado pelo próprio compositor, com quatro interlúdios adicionais entre os andamentos originais e dois novos andamentos no início. O título da suite faz referência ao livro Les Contes de ma mère l’Oye, de 1697, do escritor francês Charles Perrault (1628-1703), a quem se tem atribuído o desenvolvimento do conto de fadas como género literário. As suas histórias, combinando a fantasia e conteúdos de cariz moralizante, vieram a influenciar autores posteriores (como os irmãos Grimm) e criaram uma série de personagens, como o Capuchinho Vermelho ou o Gato das Botas, que ainda hoje são mote de inúmeras produções e eventos direccionados sobretudo a públicos infantis. A versão orquestral de Ma Mére l’Oye preserva algumas das características do dueto para piano, já que cada peça se apresenta como uma miniatura evocativa dos contextos descritos pelos títulos, tendo a elegância e a singeleza como marcas mais destacadas. Por outro lado, evidencia-se aqui uma faceta ausente na versão para piano, nomeadamente o talento de Ravel enquanto orquestrador, um atributo que a crítica e os estudiosos da sua obra reiteradamente mencionam nas abordagens à sua produção orquestral. Ravel utiliza as técnicas de orquestração não apenas como uma forma de criar ambientes específicos e de explorar sonoridades, mas também para realçar conteúdos programáticos extramusicais, ligados às histórias que cada andamento apresenta. Os títulos, por si só, remetem-nos para textos e histórias específicas: a Pavana da Bela no bosque adormecida, O Jardim feérico e Pequeno Polegar inspiraram-se em contos de 1697 de Charles Perrault; Laideronnette, Imperatriz dos Pagodes faz referência ao conto “A serpente verde”, também publicado em 1697 pela baronesa de Aulnoy (1650-1705); Diálogos entre a Bela e o Monstro remete para a versão de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont de um conto de 1740, da autoria de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (1685-1755). A escolha de Ravel é bastante consistente em termos de época e ambientes, sugerindo o interesse do compositor pelo universo de fantasia associado a autores clássicos deste género literário. O guião que Ravel elaborou para a versão de bailado desta suite providencia pistas importantes quanto aos momentos específicos das histórias que o compositor tinha em mente. Assim, a Pavana da Bela no bosque adormecida, segundo a descrição deste guião, representa o momento em que a Fada Madrinha, retirando o disfarce de roupa esfarrapada que lhe tinha permitido o acesso à Bela, contempla a afilhada adormecida. Com uns meros 20 compassos, este andamento apresenta já um enfoque particular na exploração de sonoridades orquestrais através da combinação de técnicas diversas, patente logo no acompanhamento em pizzicati, pelas cordas, dos solos apresentados pelas flautas e pelo clarinete. Segundo a descrição de Ravel, também registada em epígrafe na partitura, o segundo andamento, Pequeno Polegar, retrata esta personagem perdida na floresta com os filhos do lenhador, confiante que as migalhas de pão que foi deixando pelo caminho lhes indiquem o caminho de regresso a casa. Mas, enquanto dormem, as aves comem as migalhas, deixando-os perdidos. A caminhada errática das personagens é representada pelas linhas melódicas baseadas em excertos de escalas ascendentes e descendentes, sem direcção tonal definida, a que Ravel vai acrescentando ou retirando naipes orquestrais, de forma a criar ambientes diversos. Uma combinação de trilos, glissandi e harmónicos em três violinos, flautim e flauta imita o chilrear dos pássaros mencionados na história. Laideronnette, Imperatriz dos Pagodes evoca uma cena numa tenda chinesa, em que dois servos dançam e tocam para a Imperatriz Laideronnette enquanto uma serpente verde se aninha aos seus pés. A epígrafe registada por Ravel na partitura menciona os instrumentos tocados na história: teorbas feitas de casca de nozes e violinos de casca de amêndoas. Não são estes os instrumentos utilizados na suite, obviamente, mas há uma exploração das sonoridades da orquestra na secção inicial em tempo rápido, e no interlúdio lento e contemplativo, antes do retorno final aos conteúdos da secção inicial. Nesta secção rápida, o acompanhamento em tremoli nas cordas cria um tapete sonoro a que se sobrepõem as melodias apresentadas pelos instrumentos de sopros. Destaca-se, em especial nas melodias que estes apresentam, o uso da escala pentatónica, a que tanto Ravel como o seu contemporâneo Debussy recorreram com alguma frequência para evocar a Ásia longínqua, contexto geográfico a que esta escala está histórica e estilisticamente associada. O exotismo é também reforçado pelo destaque conferido aos instrumentos de percussão, cuja combinação com a celesta e a harpa cria um ambiente sonoro invulgar em repertório orquestral ocidental. Diálogos entre a Bela e o Monstro retrata o choque de Bela quando confrontada com a fealdade do Monstro, e a sua rejeição quando percebe que este a ama. Mas a rejeição dá lugar à aceitação quando percebe a profundidade do sentimento, e o encanto quebra-se, voltando o Monstro a ser um belo príncipe. O início, em tempo de valsa, e com um longo solo do clarinete, está associado a Bela. O Monstro é anunciado pela intervenção grotesca e lamentosa do contrafagote, seguido do mais improvável dos diálogos entre este instrumento e os instrumentos de sopro de tessitura mais aguda. O final, etéreo e quase suspenso no tempo, sugere a metamorfose mágica do Monstro no final da história. O Jardim feérico regressa ao conto da Bela Adormecida e ao seu encontro com o Príncipe Encantado após o longo sono induzido pelo feitiço que lhe tinha sido lançado. O tempo lento e solene do início evoca a entrada do Príncipe, de madrugada, no jardim onde a Bela repousa, e o solo do violino que se segue, expressivo e intenso, poderia sugerir a contemplação da amada, ou o nascer do dia que a acorda. A fanfarra final, com brilhantes glissandi na celesta e na harpa, celebra a união do par, abençoada pela Fada Madrinha. Helena Marinho


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