Transmissão online
JONATHAN AYERST órgão
JOHANN SEBASTIAN BACH Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565; Improvisação sobre “Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen” por Franz Liszt
EDWARD ELGAR Nimrod
CHARLES-MARIE WIDOR Tocata da Sinfonia para órgão n.º 5
Jonathan Ayerst foi organista principal da Igreja de St. Benet Fink, em Londres, e estudou técnicas históricas de improvisação em Estugarda. Os momentos improvisados marcam sempre presença nos seus recitais e este não será excepção, partindo de uma série de variações de Liszt. Inicia o programa com uma das peças mais incontornáveis para o instrumento, a Tocata e Fuga em Ré menor de Bach, e termina com uma obra arrebatadora de Widor, nome fundamental da escola romântica francesa.
NOTAS AO PROGRAMA
Há alguns anos, comprei um livro intitulado Studies in Music, editado em 1901. Era uma colectânea de ensaios e artigos sobre música clássica — abordando aspectos relacionados com a interpretação e curiosidades sobre os compositores. Voltei a folheá-lo recentemente e percebi, por acaso, que reúne alguns dos diferentes elementos deste recital. Para começar, há um artigo magnífico escrito por Charles-Marie Widor intitulado John Sebastian Bach and the Organ. Sendo Widor um organista conhecedor e um dos principais intérpretes e estudiosos de Bach do século XIX, é natural que lhe tenham pedido a partilha de alguma da sua sabedoria e da sua abordagem pedagógica à interpretação das obras para órgão daquele compositor. O artigo é especialmente interessante porque Widor estava, através dos seus professores e colegas, em contacto com memórias vivas de J. S. Bach, o que confere direcção e autoridade à sua escrita. Um dos últimos alunos de Bach foi Johann Christian Kittel (1732-1802/9?), organista em Erfurt (Alemanha). Kittel, por sua vez, ensinou Johann Christian Rinck (1770-1846), que foi colega próximo do organista belga François-Joseph Fétis — o professor de Widor. À sua maneira, Widor esteve em contacto com relatos informais a respeito da pedagogia do próprio J. S. Bach e do seu estilo como instrumentista, que descreve assim: “Ele tocava com ritmo admirável, um conjunto absolutamente polifónico e com uma clareza espantosa. Não tocava rápido, mantinha-se em pleno domínio de si próprio e do tempo… O efeito era de incomparável dignidade e grandeza.”
A Tocata e Fuga em Ré menor, BWV 565, é algo singular entre as obras em grande escala para órgão de Bach. O Prelúdio inicial (o título Tocata foi adicionado gerações mais tarde) tem um estilo improvisatório, com floreados, silêncios inesperados e acordes dissonantes típicos do stylus fantasticus — uma característica própria da música do Barroco inicial, amplamente usada (por exemplo) por Dietrich Buxtehude (1637-1707). A Fuga prossegue com as figurações de tocata dando entrada ao seu próprio tema, e inclui longos episódios de figurações em estilo livre que, também elas, transmitem uma sensação de improvisação à obra, contrastando com as estruturas intrincadas e orgânicas típicas da abordagem de Bach na composição de fugas. A Tocata e Fuga reflecte, portanto, a mistura de técnicas de improvisação e composição de que faziam uso frequente os compositores do Barroco, nas suas obras. Widor conta-o assim: “quando visitantes notáveis pediam a Bach para tocar órgão, este geralmente escolhia um tema e tratava-o de todas as formas e feitios, chegando por vezes a tocar durante mais de uma hora sem interrupção. Primeiro tratava o tema como um Prelúdio e Fuga nos registos de base do grande órgão; depois gostava de variar os registos, numa série de episódios composta por duas, três ou quatro partes. Depois aparecia um Coral, cuja melodia era interceptada por fragmentos do tema original. Concluía com uma Fuga usando a registação plena…”
O próprio Widor apreciava mais a composição do que a improvisação e dedicou-se a escrever um corpus substancial de obras para os novos órgãos de estilo orquestral e poder imenso concebidos por Aristide Cavaillé-Coll (1811-99). Os teclados destes novos instrumentos tinham uma acção muito mais leve do que a dos órgãos barrocos de Bach, pelo que se tornou habitual os organistas franceses se formarem enquanto pianistas virtuosos, transferindo depois essas competências para o órgão. Além disso, tocando em instrumentos Cavaillé-Coll, os organistas podiam criar efeitos de crescendo avassaladores, combinando registos e manuais através de um sistema de pistões e pedais. O americano Clarence Eddy, ao visitar Paris, descreveu uma apresentação de Widor da seguinte forma: “Numa ocasião particular, vi-me no sétimo céu; a obra escolhida era a sua Tocata em Fá, que tocou maravilhosamente. Reduz o órgão e volta a fazê-lo crescer da forma mais espantosa; não é possível obter esse resultado com sucesso em mais nenhum órgão… Faz um diminuendo que se revela extraordinário naquela igreja, e um crescendo que simplesmente nos faz levitar. Ele toca com um enorme vigor, é muito rígido no seu ritmo e quase um fanático no que respeita ao ritmo e ao fraseado.”
De regresso à minha colectânea Studies in Music, é uma coincidência o facto de outro artigo —Wagner in London — ter sido escrito por August Johannes Jaeger (1860-1909), um amigo chegado de Edward Elgar e a pessoa que inspirou uma das peças incluídas neste curto recital: a variação Nimrod, a nona das Enigma Variations. Elgar começou a escrita das Enigma Variations em 1898 e escreveu então a Jaeger: “Desde que voltei, esbocei um conjunto de Variações… sobre um tema original: estas Variações têm-me divertido porque as etiquetei com as alcunhas dos meus amigos — tu és Nimrod. Ou seja, escrevi cada uma das variações de modo a representar o humor do ‘participante’ — gosto de imaginar o ‘participante’ a escrever a variação, ele próprio (ou ela), e vou escrevendo o que eu acho que eles teriam escrito — se fossem suficientemente tolos para compor — é uma ideia engraçada e o resultado é divertido para quem está nos bastidores, sem afectar o ouvinte que nada sabe! O que te parece?” Como Jaeger significa ‘caçador’ em alemão, Elgar usou o título bíblico Nimrod — um caçador intrépido que se encontra no livro de Génesis — gracejando com um jogo de palavras oculto.
Finalmente, gostava de dizer algo sobre a improvisação baseada em Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen de Franz Liszt — ele mesmo conhecido como um óptimo improvisador. Na sua juventude fazia já uma abordagem muito liberal ao repertório, ornamentando, transcrevendo, romantizando, expandindo peças, usando frequentemente estas explorações musicais como veículos para aumentar as suas competências técnicas como pianista; mas alguns testemunhos seus contemporâneos tornam claro que a improvisação era parte integrante dos seus recitais. As suas composições nasciam das improvisações em concerto que, desenvolvidas até um determinado ponto, eram transcritas — captando uma conceptualização ou uma versão específica da peça. Assim, não surpreende que seja possível encontrar várias versões de peças de Liszt, de acordo com as sucessivas mudanças das suas conceptualizações, na procura de novos efeitos e alterações subtis de estrutura e forma. Enquanto Liszt viajava em digressão pela Europa, abismando públicos com o seu enorme virtuosismo e efeitos expressivos, a arte da improvisação já enfrentava um declínio. Os músicos, treinados nos novos conservatórios e nas instituições musicais do século XIX, desenvolviam abordagens mais históricas sobre o repertório: compositores como J. S. Bach eram redescobertos e era mais apreciada a interpretação exacta das suas partituras do que as atitudes de improvisação que lhes tinham dado origem. O músico moderno, um especialista em interpretação precisa das partituras de outro (o compositor criativo), era já uma realidade no século XIX, antes de se tornar o modelo da formação musical institucionalizada ao longo dos cem anos seguintes, até aos nossos dias.
O estilo público de improvisação de Liszt, como uma demonstração de capacidades extraordinárias, virtuosismo extremo e inspiração espontânea, é uma abordagem bastante diferente da perícia de artesão de J. S. Bach (ou mesmo de Edward Elgar, cujo estilo excêntrico e exploratório foi captado numa série de gravações realizadas em 1929). Contudo todos estes homens, cada um à sua maneira, desfrutavam e valorizavam o acto de criar música em tempo real, não se prendiam de forma nenhuma a uma única versão de uma partitura e pensavam na música em termos de conceitos flexíveis e generalizados que podiam ser torcidos e orientados para um fim expressivo. Na minha opinião, enquanto músicos clássicos, deveríamos tentar recuperar este deleite e esta capacidade natural para a criação da nossa música, em vez de apenas a interpretar; e deveríamos também apoderarmo-nos da música que tocamos, acrescentando a nossa própria marca pessoal enquanto artistas criativos. A música clássica ocidental é única (pelo que sei) entre as culturas musicais do mundo ao separar tão rigorosamente as capacidades de criação (composição) das capacidades de interpretação. Isto resulta numa quantidade de especialistas em cada um dos domínios — o que, durante algum tempo, trouxe benefícios consideráveis a cada disciplina, aumentando não só os padrões de perícia e controlo sobre formas sinfónicas de grande escala (compositores), mas também os da perícia e precisão técnica que os artistas interpretativos imprimiram na sua leitura de obras canónicas. Contudo, este período acabou e a música clássica encontra-se em perigo de ossificação, de perpetuar um corpo de repertório cada vez mais histórico, e de se tornar incapaz de responder de modo expressivo aos acontecimentos da vida moderna e às necessidades de um público que quer que a sua música seja viva e relevante.
É por estas razões que eu escolho improvisar, olhando também para o passado como fonte de orientação e inspiração. Neste recital, tomo a figura de Franz Liszt como modelo recriando algo da sua abordagem livre à estrutura e à forma, mas mantendo alguns dos aspectos e temas da composição original. O tema principal, cromático descendente, de Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen tem origem na linha de baixo da cantata de J. S. Bach com o mesmo título.
Jonathan Ayerst
Tradução: Fernando Pires de Lima
PROGRAM NOTES
Some years ago I acquired a book, Studies in Music which was printed in 1901. It contained a collection of essays and articles about classical music — aspects of performance and anecdotes about composers. Recently, looking in this book I realised by chance that it brings together some of the different elements in this recital. For a start, there is a wonderful article written by Charles Marie Widor entitled John Sebastian Bach and the Organ. Widor, as an expert organist and one of the leading interpreters and scholars of Bach during the 19th century, had obviously been commissioned to share something of his knowledge and pedagogic approach to performing Bach’s organ works. The article is interesting because Widor was, through his teachers and colleagues, in touch with living memories of J. S. Bach, which gives a directness and authority to his writing. One of Bach’s last pupils was Johann Christian Kittel (1732-1802/9?), organist at Erfurt in Germany. Kittel, in turn, taught Johann Christian Rinck (1770-1846) who was a close colleague of François-Joseph Fétis, the Belgian organist and Widor’s own teacher. In this way, Widor came into contact with living anecdotal evidence of J. S. Bach’s own pedagogy, his style of playing, which he describes: ‘He played with admirable rhythm, an ensemble that was absolutely polyphonic, and with marvellous clearness. He did not play fast, but remained master of himself and of the time … The effect produced was of incomparable dignity and grandeur.’
The Toccata and Fugue in D minor, BWV 565, is something of an oddity in Bach’s larger-scale organ works. The opening Prelude (the title Toccata was added by later generations) is improvisatory in style, with flourishes, startling silences and dissonant chords typical of the stylus fantasticus — itself a characteristic of earlier Baroque music, and used extensively (for example) by Dietrich Buxtehude (1637-1707). The Fugue continues the toccata figurations into the subject itself, and features long episodes of free-style figurations which also give an improvisatory feel to the work, in contrast to the tightly-woven, organic structures typical of Bach’s usual approach to fugal composition. The Toccata and Fugue therefore reflects the mixture of improvisation and composition techniques which Baroque composers habitually in creating music. Widor, thus recounts how: ‘when distinguished strangers asked Bach to play the organ, he generally chose a subject and proceeded to treat it in every shape and form, sometimes playing for over an hour without interruption. He first took the theme as a Prelude and a Fugue on the foundation-stops of the great organ; then he enjoyed varying his stops, in a series of episodes composed of two, three, or four parts. Then came a Chorale, the melody of which was intercepted by fragments of the original subject. He concluded with a Fugue on the full organ …’
Widor himself prized composition over improvisation and devoted himself to writing a substantial body of repertoire for the new, orchestral-style and immensely powerful organs designed by Aristide Cavaillé-Coll (1811-99). These new instruments were built with a much lighter keyboard action than the Baroque organs of J. S. Bach, and therefore it became common for French organists to train as piano virtuosi, transferring these skills to the organ. In addition, organists using the Cavaillé-Coll organs were able to create overwhelming crescendo effects, combining registers and manuals through a system of pistons and foot pedals. An American visitor to Paris, Clarence Eddy, described his performance of the F major Toccata in this way: ‘On one particular occasion I was in the seventh heaven; his selection was his Toccata in F, which he played wonderfully. He reduces the organ and builds it up again in the most wonderful way; it cannot be done so successfully upon any other organ … He makes a diminuendo which is something extraordinary in that church, and a crescendo which will simply lift you off your feet. He plays with a great deal of nerve, is very rigid in his rhythm, and almost a crank [extremist or monomaniac] on the subject of rhythm and phrasing’.
To return to my collection of Studies in Music, it is coincidental that another article: Wagner in London should be written by August Johannes Jaeger (1860-1909), a close friend of Edward Elgar, and the inspiration for the Nimrod variation (the ninth of the Enigma Variations) featured in this short recital. Elgar started writing the Enigma Variations in 1898 and wrote at this time to Jaeger: ‘Since I’ve been back I have sketched a set of Variations … on an original theme: the Variations have amused me because I’ve labelled ’em with the nicknames of my particular friends — you are Nimrod. That is to say I’ve written the variations each one to represent the mood of the ‘party’ — I’ve liked to imagine the ‘party’ writing the variation: him (or her) self and have written what I think they would have written — if they were asses enough to compose — it’s a quaint idea and the result is amusing to those behind the scenes and won’t affect the hearer who ‘nose nuffin’ [knows nothing!]. What think you?’ As Jaeger means ‘hunter’ in German, Elgar used the biblical title Nimrod — a mighty hunter found in the book of Genesis — as a joke of hidden word pun.
Lastly, I would like to say something about the improvisation based on Franz Liszt’s Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen. Liszt himself was known as a great improviser. Not only did he have a very free attitude to repertoire in his youth, embellishing, transcribing, romanticising, expanding pieces, often using these musical explorations as vehicles for expanding his technical skills as a pianist; but it is also clear from contemporary accounts that improvisation was integral to his recitals. His compositions were born out of his concert improvisations which, having developed to a certain point, were transcribed — written down to capture a particular conceptualisation or version of the piece. In this way it is not surprising to find several versions of pieces by Liszt as his conceptualisations were constantly changing, searching for new effects and subtle changes of structure and form. While Liszt was touring Europe, startling audiences with his extreme virtuosity and expressive effects, the art of improvisation was already suffering a decline. Musicians, trained in the new conservatoires and musical institutions of the 19th century were developing more historical attitudes towards repertoire: composers such as J. S. Bach were rediscovered and the accurate performance of their scores was valued more than the improvisatory attitudes which had created them. The modern musician, a specialist in accurate interpretation of another’s (the creative composer) scores was already a reality in the 19th century, before becoming the default model for musical training established throughout the following hundred years until the present day.
Liszt’s public style of improvisation, as a display of extraordinary skill, extreme virtuosity and inspiration caught in the moment, is quite a different approach to the craftsmanlike skill of J. S. Bach (or indeed Edward Elgar whose whimsical, exploratory style of improvising was captured in a series of recordings in 1929). Yet all these men, in their way, enjoyed and valued the act of creating music in real time, were in no way tied to a single version of a score and thought of music in terms of flexible, generalised concepts which could be bent and steered towards expressive ends. It’s my view that, as classical musicians, we should try to recapture this enjoyment and natural capacity to create, rather than just perform, our music; and that we should also take ownership of the music we perform, to add our own personal stamp as creative artists. Western classical music is unique (to my knowledge) among the musical cultures of the world in separating so rigorously the skills of creating (composing) from the skills of interpretive performance. To do so has created a number of specialists in each field which, for a while brought considerable benefits to each discipline, raising not only the standard of skill and control over large-scale symphonic forms (composers), but also in the technical skill and accuracy which interpretive performers brought to their understanding of canonic works. However this period is clearly over, and classical music is in danger of ossifying, of perpetuating an increasingly historical body of repertoire, and of becoming unable to respond expressively to the events of modern life and to the needs of a public who want their music to be living and relevant.
It is for these reasons that I choose to improvise, and to do so I also look to the past for guidance and inspiration. In this recital I take the figure of Franz Liszt as a model recreating something of his free approach to structure and form, yet also keeping some of the features and themes of the original composition. The principal chromatic, descending theme of Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen comes from the bass line of a cantata by J. S. Bach of the same title.
Jonathan Ayerst