Editorial 2021, por António Jorge Pacheco
“Como difícil é salvar a casca da reputação das pedras da ignorância.”
FRANCESCO PETRARCA
A Casa da Música tem a situação única de poder programar sem limitações (a não ser as orçamentais e circunstanciais, nos próximos tempos particularmente severas) os seus cinco Agrupamentos Residentes e um Serviço Educativo, o que permite à equipa de programação conceber temporadas com base em escolhas programáticas focadas em temáticas, abordagens e repertório, para os quais depois procura os intérpretes que se afiguram mais oportunos e cúmplices de uma estratégia não necessariamente evidente a olhares mais apressados e superficiais.
O modelo seguido desde 2007 pela Casa da Música, com um País Tema e retrospectivas de compositores, e com especial incidência a partir de 2013, entrecruzando País Tema e Ciclos Temáticos ao longo da temporada — não necessariamente inscritos no País Tema —, introduz uma dinâmica na programação que estimula a criatividade, foca o trabalho de programação e comunicação e potencia a relação que o público estabelece com a programação e os seus vários desafios e protagonistas.
Mais uma vez resultou consensual no seio da equipa que faria todo o sentido para o público e para o desenvolvimento dos Agrupamentos Residentes revisitar alguns países que já foram tema em temporadas passadas, aprofundando aspectos (compositores, obras, temáticas) que terão ficado por abordar por falta de espaço, recursos ou oportunidade.
Para a programação de 2021 foi considerado que a Itália era o país que (após as repetições da Áustria e da França) musicalmente mais faria sentido revisitar e nesta fase o mais apelativo, permitindo a abordagem e o aprofundamento de diferentes perspectivas do Ano Itália programado em 2013, uma vez que o seu potencial ficou longe de estar esgotado. A forma de comunicar uma nova abordagem do Ano Itália terá de assentar numa ideia de consolidação de uma imagem de marca da programação da Casa da Música. Isto porque há de facto imensa margem para inovar dentro de um determinado País Tema.
A Itália é definitivamente um país fascinante, único e irrepetível. Um país absolutamente paradoxal e pletórico, onde a excelência em quase todos os domínios da actividade humana, quando não bastas vezes o génio, convivem, a espaços com uma naturalidade desconcertante, com a vulgaridade e a corrupção. Mas a Itália, como alguém disse, é um laboratório da civilização ocidental. A famosa inscrição na t-shirt de Madonna “Italians do it better” aplica-se na verdade a tudo, para o melhor e o pior. E Maquiavel, ao contrário do que se tornou vulgar presumir, não fez a apologia do cinismo: denunciou-o — como tão bem demonstrou o nosso Jorge de Sena.
A Itália — ou melhor dizendo, a península itálica — dominou durante séculos o nosso mundo, política, cultural, religiosa e civilizacionalmente. Como todos os Impérios, teve a sua queda. Mas sempre soube re-inventar-se, re-nascer, re-surgir. O que ficou vê-se, ouve-se, cheira-se, come-se, veste-se, lê-se, habita-se, bebe-se, usa-se, sente-se. Eppur si muove, e falamos do país, não do planeta.
É impossível pensar na Itália sem tropeçar mentalmente numa quantidade prodigiosa de génios, tal como se tropeça literalmente em património artístico da humanidade ao virar de cada esquina da mais pequena cidade da Bota e, já agora, da ilha que a sua biqueira eternamente ameaça.
Passemos então à música, ou não fora em Itália que se inventou a moderna notação musical, e o piano, e o violino, e a ópera, e o concerto, e o quarteto de cordas, e o espaço enquanto parâmetro da mesma importância que a altura, a duração, a dinâmica e o timbre.
Itália. O país que, através da ópera, transformou Orfeu num mito extraordinário e universal: o símbolo do poder da música sobre a morte.
Um desfile exaustivo dos génios da música italiana e universal, do passado aos tempos mais recentes, seria interminável. Palestrina, Gesualdo, Monteverdi, os Gabrielli, os Scarlatti, Vivaldi, Rossini, Donizetti, Bellini, Verdi, Puccini, Dallapiccola, Maderna, Luciano Berio, Luigi Nono, Giacinto Scelsi, Donatoni, não terão talvez todos representatividade proporcional à sua relevância e à nossa ambição pré-pandemia para esta Temporada.
Marca de água da Casa da Música, a criação contemporânea terá, como não podia deixar de ser, um espaço natural na programação. Teremos por isso entre nós algumas das figuras cimeiras da composição como são Luca Francesconi (Compositor em Residência), Ivan Fedele, Francesco Filidei, Oscar Bianchi, dos quais daremos a conhecer obras encomendadas por esta instituição e outras em estreia no nosso país.
Alguns dos grandes intérpretes italianos da cena internacional também subirão ao palco da Sala Suggia, alguns em estreia na Casa, como Donatto Renzetti, Tito Ceccherini, Maurizio Baglini, Daniela Schillaci e Carlo Rizzi, ou desejados regressos como Fabio Biondi e Emilio Pomàrico.
Conviver intensamente durante uma temporada com um determinado compositor (ou compositores, como é o caso) é uma forma também pedagógica de aprofundar o conhecimento de um estilo particular e de uma linguagem, por vezes muito pessoais. Esta é uma experiência enriquecedora tanto para os nossos Agrupamentos Residentes como para o próprio público, que se confronta com um corpus da obra de um compositor como se fosse a um museu apreciar uma retrospectiva de um pintor.
Para qualquer orquestra do sul da Europa, tocar a música tão particular e idiossincrática de Jean Sibelius representa um enorme desafio técnico-artístico e implica uma aprendizagem. Para tanto, a Casa da Música irá convidar maestros especialistas na música de Sibelius, desde o próprio Maestro Titular Stefan Blunier até John Storgårds, Olari Elts ou Joseph Swensen, entre outros, que nos darão leituras informadas da INTEGRAL DAS SINFONIAS do grande compositor finlandês.
Por razões afins, a Casa da Música tem promovido nos últimos anos importantes Ciclos dedicados ao género concerto para instrumento solista e orquestra. O Piano, o Violino e a Voz tiveram já amplo destaque. Era altura de propor um CICLO GRANDES CONCERTOS PARA VIOLONCELO, outro dos grandes instrumentos melódicos — tão ligado à história da vida musical da Cidade —, que tantas obras-primas suscitou aos compositores desde o período Barroco até aos nossos dias. Este novo Ciclo tem por isso o mérito de colocar em destaque a Orquestra Barroca, o Remix Ensemble e a Orquestra Sinfónica, integrando-os numa Assinatura que cruza públicos e incentiva a descoberta. Como solistas foram convidados dois dos grandes violoncelistas da actualidade, Marc Coppey e Pieter Wispelwey.
O Ciclo Jazz será outro dos segmentos da programação particularmente condicionados pelo contexto de pandemia.
Com o circuito internacional praticamente parado abrem-se também outras oportunidades para os agrupamentos portugueses de grande qualidade subirem aos palcos da Casa, com todo o mérito e ainda com maior intensidade. Grande parte da actividade do Serviço Educativo é dirigida a comunidades escolares ou a sectores da população com dificuldades especiais. Nas actuais circunstâncias a palavra de ordem será como sempre adaptar-adaptar-adaptar, e ir ajustando a programação à evolução da situação, o que, no limite, levará à criação de conteúdos digitais para que possamos, mesmo à distância, continuar a cumprir a nossa missão de serviço público num momento em que este é ainda mais necessário.
Uma das obras mais conhecidas do repertório de todos os tempos, a Nona Sinfonia de Beethoven, foi estreada em Viena em 1824 mas só foi tocada em Portugal mais de cem anos depois. Este exemplo do crónico atraso da vida musical portuguesa em relação aos grandes centros europeus revela uma realidade que a Casa da Música veio alterar radicalmente.
De facto, a Casa da Música tem sido pioneira na revelação ao público português de obras relevantes do repertório, promovendo primeiras audições absolutas no país e mesmo no espaço ibérico.
A temporada de 2021 é particularmente rica nesse domínio, inclusive com um conjunto de estreias da maior importância, no âmbito do plano de encomendas em parcerias internacionais aos mais relevantes compositores da actualidade, colocando a Casa da Música no centro das atenções do meio musical.
Bons exemplos disso serão as estreias de uma nova obra de Luca Francesconi, um segundo concerto para violino, um concerto para piano de Francesco Filidei, uma nova peça orquestral de Pedro Amaral ou uma obra original de Luís Antunes Pena para o Remix Ensemble que terá estreia em Colónia. Como sempre, será eleito um Jovem Compositor português em residência, desta feita Carlos Lopes, que beneficiará de três encomendas e de oportunidades para explorar ou aprofundar novas técnicas compositivas e criativas.
A organização do calendário da programação por grandes “constelações temáticas” é já uma imagem de marca da Casa da Música e é um dos factores distintivos em relação à programação de outras salas de concerto. Se a continuidade dos títulos destes Blocos Programáticos tem sido um veículo eficaz de comunicação, a renovação dos conteúdos, compositores e intérpretes tem mantido o interesse no público e estimulado a nossa capacidade de inovação. MÚSICA & REVOLUÇÃO ou À VOLTA DO BARROCO, por exemplo, são dois dos festivais mais emblemáticos e mais esperados pelo público mas sempre programados com abordagens diferentes: os temas permanecem desafiantes e as inúmeras escolhas de repertório possíveis uma fonte de inspiração.
Em 2021 iremos introduzir dois novos Blocos Programáticos, MÚSICA E MITO em Março e MÚSICA E VINHO em Setembro.
Logo em Janeiro, com AVANTI ITALIA!, manter-se-á o modelo até agora seguido de dar o mote para a programação do ano nas duas semanas de Abertura do País Tema, com uma síntese do que é o fundamental do património musical desse país. No caso do Ano Itália será dado destaque a Palestrina, Claudio Monteverdi, Carlo Gesualdo, Carlo Monza, Giovanni Battista Sammartini, Angelo Maria Scaccia, Antonio Brioschi, Luigi Boccherini, Giuseppe Verdi, Giacomo Puccini e a música contemporânea será representada por Luciano Berio, Luigi Dallapiccola, Francesco Filidei e pelo maior compositor italiano da actualidade, Luca Francesconi.
Participam na festa todos os Agrupamentos Residentes e um conjunto notável de maestros e solistas convidados.
INVICTA.MÚSICA.FILMES tem lugar cativo em Fevereiro.
Os cine-concertos pela Orquestra Sinfónica e pelo Remix Ensemble e a música no cinema, bem como um conjunto de actividades educativas associadas, continuam a constituir um segmento que nos permite dialogar com novos públicos.
Destaque para a estreia em Portugal da música que Ivan Fedele compôs para o filme de Jean Epstein La chute de la maison de Usher, baseado no conto de Edgar Allan Poe. A cargo da Orquestra Sinfónica estará mais um filme de Charles Chaplin com música do próprio, sempre justamente popular junto do público.
MÚSICA E MITO, em Março, será então um dos novos Ciclos Temáticos da Temporada.
Nas palavras de Carlos Gual, “o termo grego mythos significa não só “relato tradicional” mas também “argumento” de uma obra teatral na Poética de Aristóteles, que, não por acaso, utiliza repetidamente a palavra nos dois sentidos”. Mas neste Ciclo, mito é, num sentido mais abrangente, uma narrativa tradicional que evoca a actuação exemplar e memorável de seres extraordinários — mitológicos, lendários ou ficcionais — que alimentam a nossa memória colectiva.
Os Mitos sempre foram e continuam a ser matéria predilecta e infindável para muitos compositores, havendo uma profunda identificação da música como agente da relação ou acesso à divindade ou ao que ultrapassa a dimensão humana. Este novo festival temático na Casa da Música aborda um tema vasto, que produziu muitas obras-primas da música erudita ocidental, desde a mitologia greco-latina, com Prometeu, Apolo ou Dédalo, até grandes arquétipos ocidentais, como poderiam ser Fausto, Siegfried ou Pelléas e Mélisande.
Os CONCERTOS DE PÁSCOA regressam para evocar a Morte e Ressurreição de Cristo. Grande fonte de inspiração para compositores de todos os tempos, crentes, ateus ou agnósticos, produziu obras-primas da humanidade como os Requiem ou Stabat Mater que nunca nos cansaremos de revisitar com interpretações renovadas. Anunciam-se grandes solistas para este período, entre os quais se destaca Andreas Scholl.
Sempre no fim de Abril, o festival MÚSICA & REVOLUÇÃO tem obedecido ao longo dos anos a várias temáticas, colocando em foco obras que mudaram o curso da história e a sua interacção com grandes convulsões sociais. No Ano Itália iremos focar-nos num compositor, Luigi Nono, sem dúvida um dos mais revolucionários e politicamente empenhados da história da música. Participam no ciclo a Orquestra Sinfónica e o Remix Ensemble — com o precioso know how da equipa da Worten Digitópia — em concertos que os cruzam em palco fazendo do contraste e da alternância um instrumento de eloquência.
RITO DA PRIMAVERA vem mais uma vez evocar o tempo da natureza que renasce e da pujança da juventude. Mantém-se o mesmo perfil de promoção de jovens músicos emergentes nos vários géneros musicais. Destaques para a reactivação do Prémio Novos Talentos AGEAS, SPRING ON!, Echo Rising Stars e mais uma edição de O Estado da Nação, em que a música contemporânea portuguesa terá mais um destaque…
VERÃO NA CASA renova o mesmo espírito festivo de sempre. Mediante a evolução da pandemia e a real possibilidade de se realizarem grandes concertos em espaço público para assistentes numerosos, tem tido como pontos altos os Grandes Concertos Metropolitanos em que particularmente as Orquestras Sinfónica e Barroca realizam concertos ao ar livre em Gaia, Matosinhos, Maia, Gondomar, Avenida dos Aliados e um pouco por todo o território nacional, assim as limitações impostas pela pandemia o permitam.
MÚSICA E VINHO é o novo ciclo temático da rentrée. Contando com a participação da Orquestra Sinfónica, da Orquestra Barroca e do Coro. No tempo das vindimas, o culto do vinho na música de várias épocas é um tema bem apelativo. Ocasião para experiências de harmonização de música e vinho com o agrupamento especializado Zefiro Torna.
O festival anual OUTONO EM JAZZ é sempre renovado com novas propostas de um género musical com cada vez mais seguidores e que aborda territórios cada vez mais vastos. Na expectativa de estarmos nesta altura em tempos normalizados, o cartaz será, como tem sempre sido, desafiador. Como o próprio título indica, À VOLTA DO BARROCO é, desde a sua origem, um festival temporalmente bastante abrangente, podendo abordar um riquíssimo património, desde a polifonia renascentista até ao produto da influência do Barroco na actualidade, sendo o centro de gravidade o período homónimo propriamente dito, com ênfase no inesgotável repertório italiano no ano em que a Orquestra Barroca celebra 15 anos de uma actividade notável. Sendo o concerto uma invenção do Barroco, o CICLO GRANDES CONCERTOS PARA VIOLONCELO terá aqui um ponto marcante, em que o repertório clássico se cruza com o contemporâneo pelas mãos dos brilhantes Marc Coppey e Pieter Wispelwey.
E chega MÚSICA PARA O NATAL…
O tradicional festival natalício na Casa da Música continua a desvendar um repertório infindável sobre a temática do Nascimento de Cristo. A Sinfónica, a Barroca e o Coro interpretam a integral das Cantatas que compõem a eterna Oratória de Natal de J. S. Bach.
Terminamos assim a Temporada com uma mensagem de esperança e sobretudo a crença de que pelo belo na arte e na vida nos salvamos.
ANTÓNIO JORGE PACHECO