Requiem de Francesco Filidei, estreia mundial na Casa da Música: porquê um Requiem. Notas do compositor
A editora Ricordi publicou recentemente um artigo acerca da estreia mundial do Requiem, de Francesco Filidei, pelo Remix Ensemble. Será uma das obras em destaque no concerto de 20º aniversário do Remix Ensemble (20 de Outubro, às 19:30), que contará com a colaboração do Coro Casa da Música. Fique com o texto integral de Francesco Filidei acerca desta composição:
Francesco Filidei
Então aqui estou eu, com a partitura terminada e as notas do programa ainda por escrever. Vejo cada vez pior, tenho dores horríveis nas costas e as mesmas dúvidas frívolas constantemente a assombrarem-me. O que fazer com a vida e a perceção de que o tempo nos escorre como água por entre os dedos? O que fazer com todas as minhas memórias e com o próprio passado? E o que fazer com todas essas questões que continuam a perseguir-me? Perguntas cujas respostas nos deixam de mãos vazias. Falando agora de questões mais leves, que diabos vou escrever para conseguir preencher meia página do programa do concerto? Para um Requiem? O risco de cair numa retórica simplista está mesmo na ponta da língua, ou dos dedos, mas eu gostaria muito de evitar parecer o último prenúncio da desgraça de unhas e garras cravadas na última crise que se lembra de surgir do nada. Em todo o caso, já desisti de tentar descobrir se fará algum sentido compor um Requiem hoje em dia.
O que quer que me tenha levado a escrever um Requiem é um mistério que ainda tenho de resolver. O certo é que, desde que compus as minhas primeiras obras, coloquei no centro das minhas reflexões uma investigação sobre todo o absurdo que parece acompanhar-nos onde quer que vamos, o que quer que façamos. Crescemos cheios de promessas e esperança, e, eventualmente, evaporamos, deixando para trás quase nada a que as poucas pessoas com quem nos cruzámos se possam agarrar. E o facto de não haver um livro de reclamações onde possamos queixar-nos acerca da miséria da existência não ajuda muito quando estamos a tentar dar um sentido a tudo isto.
Até consigo imaginar o que restará de mim depois de eu partir. Talvez alguns comentários de um hipotético diretor artístico, do género, “Oh, sim, sim, Filidei… Claro, lembro-me muito bem dele. Era o tipo que exigia sempre mais dinheiro para as suas obras encomendadas, que escrevia aquelas notas patéticas nos programas e as enviava só depois de receber o último telefonema, já num tom ameaçador. E que andava sempre às voltas daqueles cantos de pássaros que usava constantemente nas partituras. Não me admira nada que um dia, puf! Alguém o tenha tomado como um galeirão. E pronto. Bom, mas em todo o caso a obra dele resume-se à reciclagem de material antigo e pouco mais. Requiescat in pace, etc., etc. Amém.”
Não, estou a brincar. Não pretendo partir tão cedo, nem eu nem as minhas divagações. Continuo aqui, massacrado pela ideia do fim, que só me leva de volta ao início. Ao ponto de a minha música transbordar de danças de morte, dos triunfos da morte, de gestos finitos, do silêncio da morte. Até tive a ideia malfadada de escrever O Funeral do Anarquista Serantini, e, quando os ensaios começaram, cheguei a ler coisas como “Quinta-feira, às três da tarde. Filidei: Funeral”. Não terá chegado a hora de mudar de direção e começar a escrever polcas e mazurcas? Mas como posso pôr fim a esta obsessão pelo fim? Mandar rezar uma missa em seu nome? Talvez não. No meio de tantas obras que escrevi, faltava um Requiem. Portanto, fiz um, só para colmatar a falha. Julgo eu. Aos que acham estranho um descrente escrever um Requiem, e ainda por cima usar um texto devoto, respondo: Se ser um organista nunca esteve muito longe da minha necessidade de escrever um Requiem, isso deve-se essencialmente ao meu desejo de evocar a sensação de melancolia que está na raiz de tal escolha, o tipo de sentimento que só uma forma de música há muito morta é capaz de evocar. Posso não acreditar em Deus, mas esforço-me por acreditar na paixão da nossa história e no que podemos recordar do nosso passado, bem como na vontade de preservar todas as emoções que persistem. É por isso que gosto de usar material repleto de experiências vividas. Neles é mais fácil reconhecermo-nos e observar os caminhos percorridos. Uma forma de contradizer, sempre que necessário, esses mesmíssimos caminhos, que, no entanto, continuam a surgir no presente. Em todo o caso, começar do zero é pura utopia, portanto mais vale termos isso como certo. Depois, assim que a obra crescer e atingir a maturidade, o seu destino é o que Deus pode ou não ter decidido. Eu disse Deus? Talvez seja apenas o efeito do meu sobrenome traiçoeiro que sempre me condenou a fazer as contas quando o tópico de Deus vem à baila. Façamos figas! Ainda aqui estou, mas quase no fim. Já só faltam algumas linhas para dar por terminado o meu trabalho com as palavras (um trabalho sujo, mas alguém – neste caso, eu – tem de o fazer) em vez de notas musicais. Pensando bem, adoraria ver o que faria um escritor se lhe pedissem para explicar um dos seus romances usando sons em vez de palavras. Zás-trás-pás, com certeza! Mas já estou a divagar. Vamos lá acabar com isto. Quanto aos escritores, uma última reflexão. Este trabalho vai estrear em Portugal, por isso gostaria de o dedicar ao Antonio Tabucchi. Requiem é o título de um dos seus melhores livros. A história passa-se em Lisboa, suspensa no tempo. A última vez que falei com Tabucchi, foi num daqueles encontros malucos, como os que ele descreve nesse mesmo romance. Achei-o muito melancólico, sentado no bar do aeroporto de Pisa. Combinámos encontrar-nos novamente em Paris, onde ele morava. Mas acabei por nunca mais o ver. Este Requiem deve-lhe algo. Apesar do latim. Apesar das formas rígidas, que ele poderia muito bem não aprovar.
